terça-feira, 26 de julho de 2011

UM CONTO NOVO


A VIDA É DOCE
- Eu sou apenas uma mulher prática. A última frase foi dita já com as malas dele saindo pela porta e ela mandando o taxista subir para pegá-lo.
Anita nasceu prática. Poucos brinquedos na infância, poucos namorados no colégio para não distrair os estudos, uma faculdade feita trabalhando e paga com enormes dificuldades, mas sempre em dia, um diploma de advogada que lhe daria (pensava então) um sossego na vida adulta. Deixou os beijos, os abraços, as saídas com a turma e o sexo para depois dos vinte e cinco, do escritório montado e do carro na garagem.
Agora, com trinta anos, percebeu que poderia ter sido mais emotiva, se deixado levar por pequenas loucuras de adolescência e de universitária que, enfim, não seriam a pior coisa do mundo – como quando daquela vez que podia, por exemplo, ter experimentado maconha na calourada e não quis por medo de se viciar. Aquele porra louca do Tarciso experimentou, chapou a faculdade inteira e hoje é procurador do trabalho.
Os namorados também podiam ter frequentado mais as letras do alfabeto. Que ela lembre, só dois antes desse desastre que foi o Ciro. Perdeu a virgindade com o Ciro porque achava que ele seria o cara que iria tirá-la de uma vida de dificuldades. Afinal, ele era professor universitário, consultor de uma grande empresa de remédios e outras cositas mas. Depois que deu pra ele e foi ficando pelo apartamento que ele alugou para impressioná-la, percebeu a furada: o cara era um fodido, um desorganizado com as finanças, devia todo mundo e tinha os bens vinculados a uma ex-mulher que ela só descobriu fuçando as coisas dele, quando já não dava mais para recuar... Uma vida de aparências, a do Ciro, na qual ela estava irremediavelmente metida até o pescoço.
Decidiu não ter filhos. As duas vezes que engravidou, botou pra fora, uma inclusive na mesa de cirurgia de uma clínica clandestina. Melhor correr o risco de se estrepar do que levar pela vida toda um pedaço daquele doido lascado, ela disse numa mesa de bar a uma amiga, que se escandalizou mas compreendeu e prometeu guardar segredo. Não guardou e agora ela tinha que dar explicações sobre isso ao Ciro, numa briga em que ele lhe deu um tapa no rosto. Foi aí que ela decidiu botá-lo pra fora de casa, pois podia ter sido tola, mas ainda era uma mulher prática.
- Foda-se a sua praticidade. Você vai acabar seus dias velha, feia, sozinha e toda fodida, porque ninguém vai querer ficar ao seu lado, sua cadela escrota. Ciro gritava do táxi, empurrando as malas pra dentro e contando os abortos para quem quisesse ouvir. Anita estava sentada no piso, embaixo da janela, com as mãos nos ouvidos e os olhos fechados. Quando tudo se acalmou, levantou-se, enxugou uma lágrima que ia caindo – uma só! -, desceu e foi mandar lavar o carro.
No fim daquela semana, ela já estava com as senhas trocadas, um outro netbook, o cabelo pintado de loiro e num apartamento novo, alugado mobiliado de uma amiga que estava indo para um estágio no exterior. Um apartamento num condomínio com porteiro, para não correr o risco de o maluco do Ciro querer invadir.
{Imperatriz, 22.07.11}

Um comentário:

  1. Com certeza tem muita diplomada e muito malandro de paletó se identificando,realmente o cotidiano é cinza e esse conto é "cinzamente" perfeito.

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