terça-feira, 6 de setembro de 2011

UM CONTO NOVO...


TAPA NA CARA

- Quem bate esquece, doutor, mas quem apanha guarda pro resto da vida.
- Como foi que aconteceu?
- A morte?
- Não, o tapa na cara.
- Foi em 85. Uma besteira. Eu tava no serviço, roçando minha roça quando os capangas chegaram. Me pegaram pelo braço e me botaram dentro da D-20 dele. Não disseram nada, mas eu já sabia que eram jagunços dele. Me levaram pra casa dele, que ficava numa outra fazenda, perto daquela onde eu botei minha roça. Me empurraram pra fora do carro e eu caí, já nos pés dele. Ele me levantou pelo braço e, com o dedo na minha cara, me disse que aquela terra era dele, que eu era um ladrão de terra vagabundo, que eu fosse pra puta que pariu. Me deu um tapa na cara e me empurrou. “É só um recado”, ele disse, e entrou. Aí os capangas me levaram de volta.
- E ficou nisso?
- Ficou. Eu peguei minhas coisas, peguei a mulher e os dois meninos e saí de lá. Fui morar na casa do meu sogro, perto da beira do rio. Lá montei uma quitandinha e fui fazendo a vida. Mas nunca me esqueci daquele tapa na cara, não senhor.
- E você fez o quê?
- Até ontem, nada. Só comprei uma faca de limpar porco e todo dia, de tardinha, eu afiava ela na pedra, perto do jirau.
- Nunca teve vontade de ir procurar ele?
- Tive, mas nunca fui. Mas sempre pedi a Deus que botasse a oportunidade no meu caminho. Vinte anos eu pedindo, Deus nunca me ouviu. Mas ontem aconteceu. Acho que foi o diabo que criou a oportunidade.
- Mas por que justamente na frente da criança?
- Eu não planejei nada, mas não podia perder a oportunidade. Toda vez que eu saía de casa, levava a faca dentro da calça, metida na cintura. Tinha a esperança de um dia encontrar ele e acertar as contas. Ontem eu vinha subindo a rua e encontrei ele sentado na cadeira, de costa pra rua, com a menina no colo. Eu não pensei duas vezes: tirei a faca da cintura, cheguei rápido nele e enfiei no pescoço.
- Um golpe só?
- Um golpe só, meti a faca até o cabo e fiquei segurando firme, olhando ele de cima, sem afrouxar a mão. Ele foi soltando a menina e o braço amoleceu. A menina ficou gritando “vovô, vovô”.
- Ele disse alguma coisa?
- Nada. Só ficou me olhando com o olho duro, parecia uma estátua com a cabeça pra cima.
- E tu?
- Também não disse nada. Só fiquei olhando ele com o olho de ódio. Queria que ele morresse vendo a minha cara. Queria que ele se lembrasse e soubesse por que que ele tava morrendo.
- E depois?
- Depois que ele ficou todo vermelho do sangue e amoleceu o corpo todo, eu puxei a faca e saí correndo.
- E foi se esconder?
- Não. Fui pra casa avisar a mulher e esperar vocês.
- E agora o senhor vai ficar preso pelo resto da vida.
- Tá certo, doutor. Eu não reclamo. Sou velho, não demoro mais. Minha vida ganhou sentido de novo.

LAGO DA PEDRA, 03.09.11

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